sábado, 10 de março de 2012

HISTÓRIA DE CAXIAS DO SUL



A história de Caxias do Sul, uma das principais cidades do estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, começa antes da colonização italiana na região. Habitada desde tempos imemoriais por índios nômades, no século XVII a área era percorrida pelos missionários jesuítas, que tentaram fundar reduções, mas sem sucesso, sendo registrada a presença no distrito de Santa Lúcia do Piaí do padre Cristóvão de Mendoza, que ali foi morto pelos nativos em 1635. Um pouco antes de 1790 as terras do que hoje é o seu distrito de Fazenda Souza foram ocupadas por Inácio Souza Corrêa, soldado do destacamento de Santo Antônio da Patrulha, que ali fundou uma estância para criação de muares,[1] mas o povoamento efetivo só ganharia impulso com a chegada de levas de imigrantes italianos a partir de 1875. Desde então se desenvolveu rapidamente para em 2008 ser uma das 50 maiores cidades do país, com mais de 400 mil habitantes,[2] tornando-se uma das mais fortes economias do estado.[3]
Primórdios da colonização 


A crise na Itália e o contexto brasileiro


No início da década de 1870 a Itália, ainda sofrendo com os problemas das Guerras de Unificação, começou a enfrentar as conseqüências da recessão econômica mundial de 1873-74. Além disso, a concorrência desfavorável com os cereais produzidos na América do Norte desestruturou a economia agrícola italiana, causando êxodo rural, declínio dos ofícios artesanais e da produção de alimentos, e o surgimento de um excedente populacional nas cidades sem qualificações para o trabalho urbano. O resultado foi a fome e o empobrecimento, e a solução encontrada foi a emigração .[4]

No Brasil na época o sistema escravocrata estava sendo minado com a proibição do tráfico de escravos (1850) e com a promulgação da Lei do Ventre Livre em 1871, ocasionando a diminuição de oferta de mão-de-obra barata, e surgia a idéia de se empregar trabalhadores livres. O Brasil já incentivara antes a imigração alemã, e a iniciativa fora considerada um sucesso, mas no fim do século XIX a situação mudara, e as dificuldades impostas pela nova legislação brasileira já não atraíam mais os alemães e nórdicos, que eram os preferidos pelo governo imperial. Outras mudanças nas leis e, apesar dos preconceitos étnicos, a busca de candidatos na Itália, e mais a demarcação da colônia Fundos de Nova Palmira em 1875 nos altos da serra gaúcha, prepararam o caminho para a chegada dos italianos.[5]

A chegada e assentamento dos imigrantes






Navio com imigrantes italianos chegando ao Brasil.

Impulsionados pelo desejo de far l'America (fazer a América), e mais ou menos iludidos com as promessas do governo brasileiro e com as lendas sobre a Cucagna, um país imaginário cheio de riquezas fáceis que foi identificado com o Brasil, grandes levas de italianos começaram a chegar ao país nas precárias condições de navios superlotados onde as mortes por fome e doenças eram comuns. Inicialmente eram destinados às lavouras cafeeiras de São Paulo, e a partir da demarcação da colônia os excedentes foram sendo encaminhados em outros navios para o sul. Entravam no estado por Rio Grande e desembarcavam em Porto Alegre, onde permaneciam na Casa dos Imigrantes até tomarem barcos menores para São Sebastião do Caí, de onde prosseguiam a pé, em carroças ou a cavalo até o topo da serra, para alcançarem os Fundos de Nova Palmira, uma região anteriormente conhecida como Campo dos Bugres por causa de evidências de acampamentos indígenas. Seu caminho se fazia pela Picada dos Boêmios, uma trilha aberta desde 1872 por alguns alemães da Boêmia que já viviam nos limites da colônia, no futuro distrito de Forqueta. Terminada a subida, eram instalados em um barracão coletivo na primeira sede da colônia, então localizada em Nova Milano, hoje no município de Farroupilha, à espera da distribuição, pelos funcionários da Comissão de Terras, dos terrenos, sementes e ferramental básico para o trabalho agrícola, o que podia levar meses para acontecer. Em verdade a ocupação da atual região urbana de Caxias do Sul, na nova sede fundada no Travessão Santa Thereza, a chamada Sede Dante, onde hoje é a Praça Dante Alighieri, só aparece registrada a partir de 30 de maio de 1876. Eram em sua maioria jovens famílias procedentes do Vêneto, perfazendo cerca de 71% do total, mas aproximadamente 23% deles eram austríacos, 2% brasileiros e o restante de outras origens como a França, Espanha e Inglaterra…[6][7][8]


Sede Dante em torno de 1876-77.


Propriedade de Italo Masotti na zona rural, fim do século XIX. 

Os lotes eram escolhidos pelos próprios imigrantes dentre os disponíveis, não eram gratuitos e deviam ser reembolsados ao governo em alguns anos. Feita a escolha, recebiam um título de posse provisório e se mudavam para outros barracões nos travessões ou linhas, as primeiras estradas, e iniciavam o trabalho de seu estabelecimento, com a derrubada da mata, construção da moradia e plantação das primeiras lavouras de subsistência. Enquanto a casa não ficava pronta e a agricultura não dava seus frutos, o sustento vinha da coleta, da caça, da venda da madeira, de algum auxílio alimentar oficial e do trabalho assalariado para o governo, participando na demarcação de novos lotes e na abertura das estradas. Entretanto, não eram todos agricultores, expressiva parcela dos imigrados praticava ofícios e passou a residir na sede. Os agricultores estabeleciam residência na zona rural, nas terras recebidas, e aqueles que tinham um pouco mais de recursos adquiriam lotes também na sede. Em 1877, quando a área foi batizada de Colônia Caxias, já havia cerca de duas mil pessoas fixadas.[9][10]

A organização da propriedade rural era de extrema simplicidade. Uma casa rústica de madeira, às vezes de taipa ou pedra, dividida em uma cozinha grande onde ficava o focolaro, o fogo doméstico, e mais uma sala e poucos quartos de dormir, e um sótão ou porão como depósito. Junto dela se erguiam um estábulo, um paiol, um chiqueiro e um galinheiro. Freqüentemente a cozinha se localizava em um cômodo separado do corpo principal da casa, em vista do perigo de incêndio, já que o fogo ficava aceso todo o dia. Plantava-se também uma horta, além das lavouras principais. Como fora proibido o trabalho escravo na colônia,[11] todas as atividades eram desenvolvidas pela família. O estabelecimento inicial não foi fácil e a pobreza era a regra..[12][13]
A terra virgem se revelou fértil, e logo a lembrança da fome ficou para trás, com boas safras de batata, feijão, mandioca, amendoim, abóbora, tomate, pimentão, trigo e milho, e com o crescimento das criações de porcos, galinhas e gado bovino. Os tropeiros com suas caravanas contribuíam para o comércio, o mesmo fazendo os alemães de São Sebastião do Caí, que já haviam desenvolvido uma rede eficiente de entrepostos, facilitando o escoamento dos primeiros produtos agropecuários como mel, vinho, graspa, embutidos, banha, farinha e queijo, e a troca por outros bens necessários, e com isso impulsionando uma industrialização incipiente.[14][15] O resultado dessa atividade pôde ser visto em 1881 com a primeira Feira Agro-Industrial, origem da moderna Festa da Uva, que foi instalada no edifício da Diretoria da Comissão de Terras, reunindo num evento principal as diversas festividades comemorativas das colheitas realizadas esparsamente pelos colonos.[16]
O crescimento do povoado foi rápido; em 1883 já se contava uma população de 7.359 habitantes, e a presença de 93 estabelecimentos comerciais, entre olarias, mercados de secos e molhados, funilarias, carpintarias, marcenarias, ourivesarias, ferrarias, moinhos, sapatarias e alfaiatarias, que tornavam a colônia praticamente auto-suficiente, e logo a policultura de subsistência perdia espaço para as monoculturas da uva, do trigo e do linho com vistas à comercialização, crescendo também a criação do bicho da seda e a indústria de transformação dos produtos agrícolas.[17] Apesar disso boa parte dos colonos, especialmente os das zonas rurais mais distantes da sede, enfrentava o problema do isolamento e com isso a dificuldade de comercializar seus produtos, e conquanto a comida fosse farta, lhes faltava todo o resto, fazendo com que o Cônsul italiano em visita à colônia em 1905 ficasse espantado com seu aspecto de mendigos maltrapilhos.[18]


Primeiras administrações e conflitos


Réplica do centro de Caxias do Sul em 1885, criada no Parque da Festa da Uva.

A Sede Dante tinha lotes bem menores que os da zona rural, e de início se destinava apenas à instalação da Diretoria de Terras, mas logo se tornou o centro da urbanização e do comércio, e sua área teve de ser ampliada. O plano de ocupação da colônia se desenvolveu seguindo um traçado prévio em malha ortogonal, como um tabuleiro de xadrez, a chamada rede romana. Esse modelo não se revelou o mais apropriado para a região, cheia de acidentes geográficos, e a urbanização foi quase sempre bastante difícil e dispendiosa, o que fez mais tarde o Intendente José Penna de Moraes chamar o projeto de um Minotauro, que devorava todas as verbas do orçamento.[19]

A vida política de Caxias do Sul, apesar do seu relativo isolamento até início do século XX, não deixou de ser movimentada e por vezes violenta. Em 12 de abril de 1884 deixa de ser uma colônia e é emancipada, assumindo a denominação de Freguesia de Santa Thereza de Caxias, vinculada a São Sebastião do Caí, tendo João Muratore como seu primeiro administrador distrital. Já era assim uma paróquia autônoma e se tornaria em agosto do mesmo ano cabeça de uma comarca judicial. Nesta altura já possuía 10.500 habitantes.

Em 20 de junho de 1890 foi elevada à condição de vila, com o nome de Villa de Santa Thereza de Caxias, que passava a necessitar de uma organização legal para se autogerir. Em Portaria de 28 de junho o governo estadual nomeou uma Junta Governativa provisória, integrada por Ernesto Marsiaj, Angelo Chitolina e Salvador Sartori, para administrar o município, concentrando os poderes Legislativo e Executivo. Esta Junta encerrou suas atividades em 20 de outubro de 1891, quando foi realizada a eleição de sete Conselheiros Municipais, um cargo equivalente ao de vereador, para compor a primeira legislatura do município. Entre a eleição e a posse do Conselho, marcada para 15 de dezembro de 1891, ocorreu o primeiro levante popular da colônia, a Revolta dos Colonos, em protesto contra a eleição. O clima permanece tenso e nova revolta acontece no ano seguinte, envolvendo 300 sediciosos, e assume a administração municipal uma Junta Revolucionária composta por Luiz Pieruccini, Domingos Maineri e Vicente Rovea, líderes do movimento, sendo apoiados pelo Delegado de Polícia Francisco Januário Salerno, que se autonomeia Intendente, todos em oposição ao Conselho eleito. O Conselho ultrajado reclama ao governo estadual, que indica em 5 de julho de 1892 o primeiro Intendente Municipal, Antônio Xavier da Luz. Os revoltosos se entregam e a ordem volta à cidade. Assim, em 12 de outubro de 1892 se constituiu, na forma da lei, o município, e logo se aprovavam sua Lei Orgânica e o Código de Posturas, dispondo sobre uma multiplicidade de aspectos da vida municipal, como o decoro público dos cidadãos, a manutenção da ordem, os limites do município e seu traçado urbano, higiene e saúde pública, e outros mais.[20][21]

Prédio da Diretoria da Comissão de Terras, alvejado pelos revolucionários. O prédio data de 1883 e foi a primeira edificação em alvenaria da cidade. Foto de D. Mancuso no Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami (AHM).

Pouco depois, em 30 de junho de 1894, a Revolução Federalista chegou a Caxias do Sul e deixou um rastro de destruição. A cidade foi invadida por 400 revolucionários comandados por Belisário Baptista de Almeida Soares, que saquearam o comércio e atacaram edifícios públicos, obrigando a população a se refugiar na zona rural.[22] A presença local de elementos maçons e carbonários também causou tumultos e violência especialmente contra os religiosos, armando-lhes ciladas, assaltos e tentativas de assassinato, com isso dividindo a comunidade e obrigando alguns dos primeiros padres a andarem armados ou a se mudarem para outros locais. Antonio Passaggi, o primeiro capelão da colônia, em certa ocasião foi vítima de uma armadilha, quando alguns indivíduos anticlericais armaram um falso casamento entre dois homens, um deles travestido. Descoberta a trama, o punido foi o padre, sendo destituído de suas funções e privado das ordens sagradas pelo Bispo, enquanto os verdadeiros culpados permaneceram livres. Em 1898 o padre Pedro Nosadini, que já havia sido seqüestrado e ameaçado de morte em 1897, escreveu uma carta aberta ao governo denunciando as calúnias que o envolviam no atentado que sofrera o Intendente José Cândido de Campos Júnior, e outros fatos vexatórios reveladores do clima de intriga, animosidade e incompreensão que reinava entre igreja e políticos locais. A paz só foi estabelecida quando assumiu a direção da paróquia o padre Antonio Pertile, em cuja lápide consta o título de Pacificatore di Caxias.[23][24]

Cultura e sociedade nos primeiros tempos da colônia

Família Costamilan-Oppelt, 1901.

A sociedade caxiense em sua fundação era estruturada em torno do núcleo familiar e da cultura italiana trazida com os imigrantes, fortemente marcada pelo Catolicismo.[25] A preocupação com a subsistência era o fator determinante da organização do tempo, restando pouco para atividades educativas e culturais, embora a falta de escolas na colônia fosse criticada desde o início.[26] A dedicação ao trabalho era um valor fundamental, mas as técnicas agrícolas trazidas da Itália não serviam bem ao clima e geografia diferentes do sul do Brasil, e a adaptação da cultura agrária italiana tradicional para um substituto aclimatado não se deu sem penosas dificuldades.
Família Paternoster em frente ao seu hotel, o modelo patriarcal se repetindo na zona urbana, c. 1920.


O trabalho da mulher, c. 1910.

O homem era o líder da família, e distribuía as funções de cada membro do grupo familiar. A ele, o "pai-patrão", e aos filhos mais crescidos, cabia o trabalho mais pesado da carpintaria e da ferraria, e do desbaste da mata e da abertura das lavouras, as quais, junto com as hortas e as criações de animais, depois ficavam sob o cuidado principalmente da mulher e das filhas e filhos menores, desde pequenos acostumados à dura lida na terra da manhã à noite. E como dependia só deles a própria sobrevivência, as famílias tendiam a ser numerosas a fim de se criarem mais braços para o trabalho. Os pequenos lucros eram economizados para aquisição de terras a fim de garantir o futuro dos descendentes ou investidos na pequena indústria doméstica.[27]
Nesse sistema hierarquizado e patriarcal de produção familiar, que se repetia nos pequenos comércios e seria continuado até mesmo avançando o século XX, quando a sobrevivência diante de uma natureza selvagem já não era uma ameaça urgente, à mulher cabia um papel subordinado, o qual, embora pouco reconhecido, era básico como centro aglutinador da família e daquela sociedade primitiva. Era ela a "matriz reprodutora", se encarregava também da educação elementar da prole e desempenhava funções socializadoras importantes. Era a figura mediadora por excelência, apaziguando conflitos, facilitando a solidarização entre as gerações e o contato entre os diversos grupos de colonos. Também se deveu à mulher, principalmente às avós, a preservação da memória oral na transmissão das tradições que até hoje se cultivam na cidade, ensinando às gerações sucessivas músicas, lendas sacras e profanas, artes manuais, jogos infantis, e a culinária típica da região.[28]
Contudo, a maior força unificadora entre os colonos era a religião Católica. Vindos de um país que acabara de se unificar, não havia entre eles um sentido de pátria original, mas diferenciavam-se segundo a região de onde provinham, e tampouco a língua serviu como elo comum, já que falavam diferentes dialetos do idioma italiano. A religião, único elemento de fato compartilhado por todos, funcionou assim como ponte integradora entre os grupos. Como afirmou Olívio Manfroi,

A Praça Dante Alighieri com a Catedral de Caxias em 1899. Foto do AHM.


"A expressão religiosa, em suas manifestações cotidianas e festivas, era o sinal mais significativo do universo cultural dos imigrantes italianos. Era a referência primeira e indispensável de filiação ao grupo. (…) Foi através da religião católica que o imigrante italiano se encontrou consigo mesmo e com os outros".[29]
Destarte, aquela cultura foi pautada pelo referencial religioso, logo assumindo grande importância as capelas, que se multiplicavam em cada travessão e centralizavam as festas e comemorações grupais. A capela foi o centro social em torno do qual iniciou a urbanização dos distritos e da sede municipal, e em sua volta aparecem o salão de festas, as canchas esportivas, os bolichos, as escolas e o comércio. Até hoje a Diocese de Caxias do Sul possui sob sua jurisdição 678 capelas que agregam um grande contingente humano na zona rural. Na maioria delas não havia sacerdote permanente, e o culto era conduzido por leigos que tinham algum conhecimento do latim eclesiástico e dos ritos e tradições, e era essa figura quem catequizava, liderava a reza comunitária do terço, fazia as orações fúnebres, batizava, abençoava as colheitas e os doentes e em certos casos até mesmo celebrava a missa dominical. Esses costumes sui generis, nascidos espontaneamente da necessidade popular, em vista da escassez de padres para atenderem a um território vasto, não tardaram a entrar em conflito com a autoridade eclesiástica instituída regularmente, mas o papel do "padre-leigo" na sociedade colonizadora foi de enorme importância. Mesmo quando sacerdotes itinerantes acorriam em socorro dos fiéis se notava uma fraca adesão à ortodoxia. O povo participava dos vivos festejos de fundo religioso, mas se esquivava da confissão e da comunhão.[30] De qualquer forma a igreja oficial pôde dar início em 1893 à construção da Catedral de Caxias do Sul, hoje a sede do Bispado, a partir do esforço conjunto da comunidade de imigrantes, que trabalhou nas obras gratuitamente e desembolsou a elevada soma de 150 contos de réis até a data de sua inauguração em 1899, quando ainda faltavam todo o revestimento da fachada e as decorações internas. Na consagração solene do templo em 15 de outubro de 1900 o Bispo Ponce de Leão crismou 5 mil pessoas.[31]
A religião também foi a responsável pelo aparecimento das primeiras manifestações artísticas da colônia, e desde o início houve artífices que esculpiram estátuas e altares, e pintaram imagens devocionais. Dentre eles se destacaram Tarquinio Zambelli, Francisco Meneguzzo e Pietro Stangherlin, deixando obra significativa em muitas igrejas e capelas da região e outras hoje preservadas no Museu Municipal de Caxias do Sul.[32]

Pietro Stangherlin: São Marcos evangelista, 1890. Museu Municipal



 Tradições
Reunião da família Benvenutti, 1928.


Entre as fadigas da dura jornada de trabalho dos imigrantes, algum tempo, escasso que fosse, era dedicado ao cultivo das tradições trazidas da Europa. Ao contrário da Itália, onde os agricultores viviam em vilarejos com casas muito próximas, os paesi, de onde saíam para trabalhar os campos do entorno, na colônia as habitações eram distantes uma da outra, e a necessidade do encontro social se fazia mais premente.[40] O filó, a reunião entre as famílias, era o momento privilegiado onde acontecia esse cultivo. Aconteciam principalmente na zona rural, aos sábados à noite ou depois da missa dominical, nas cozinhas das casas, ou nas cantinas, e delas todos participavam. Os homens conversavam e jogavam cartas, bocha ou a mora, as mulheres praticavam artes manuais como o crochê, a costura e a confecção da dressa, uma trança de palha de milho que dava origem aos chapéus, e trocavam suas experiências, enquanto as crianças brincavam com brinquedos rústicos. Em meio a essas reuniões, acompanhadas de um bom copo de vinho, do salame, dos grostoli, do pão e do queijo, surgiam as cantorias em coro, geralmente sem acompanhamento instrumental, de longas canções tradicionais, marcadamente narrativas, que lembravam sua terra italiana, cantavam sua saudade dos parentes distantes, falavam do amor e do trabalho. Il primo, ou guia do coro, iniciava os versos, e o conjunto completava a estrofe. Para o Natal havia tradições especiais, quando grandes grupos percorriam todas as linhas e visitavam todas as casas, cantando as canções da stela e portando uma tocha enfeitada com uma estrela de papel - era o anúncio da nova stela, a nova estrela que simbolizava o nascimento de Jesus. No dia do padroeiro da capela ocorria a sagra, outra festa ritual também marcada pela prática coletiva da música, mas agora, quando possível, havia até uma banda para acompanhamento. O mesmo acontecia nos casamentos, nas festas de Ano Novo, e em outras datas importantes.[40][41][42]

A cidade na primeira metade do século XX


Economia e infra-estrutura


Um dos primeiros moinhos de Caxias do Sul, no distrito de São Romédio, pertencente a Giacomo Clamer, Giovanni Battista Longhi e Giustina Brustolin. 1881.

Prédio do Banco Nacional do Comércio, década de 1920. Foto do AHM.


Na virada do século o setor industrial estava se estruturando a partir da microindústria artesanal de transformação de produtos alimentícios básicos como o milho e trigo para farinha, a uva para o vinho e a graspa, os suínos para embutidos e banha, e de produtos naturais como a madeira da araucária, que existia em abundância e tem excelente qualidade. O comércio já mostrava um desenvolvimento também expressivo fazendo circular esses produtos derivados, tanto que contatos comerciais para colocação do vinho caxiense já estavam estabelecidos com São Paulo por pioneiros como Abramo Eberle. De fato, o apelido de Pérola das Colônias pelo qual a cidade é conhecida foi-lhe dado por Júlio de Castilhos quando a visitou já em 1890, admirado com o trabalho realizado em tão pouco tempo.[43]
O século inicia com um acontecimento de importância, a fundação em 1901 da primeira entidade de classe da cidade, a Associação dos Comerciantes, sinal visível do início da organização da sociedade em bases mais efetivas. A Associação teve papel de enorme relevo em toda a região e surgiu como a maior força social depois da Intendência e do Conselho Municipal caxienses. Mantinha um controle rígido e eficiente sobre o comércio, tinha grande influência junto ao poder constituído, intervindo beneficamente em crises econômicas como as de 1923 e 1929 e em problemas de infra-estrutura local como nas carências de energia elétrica e de água, participou do movimento que alterou o traçado original da BR 116 para que passasse pela cidade, assumiu a direção da Festa da Uva e estendia sua atuação à área assistencial, como quando na Revolução de 30 auxiliou as famílias dos combatentes caxienses e deu mais tarde subsídios para implantação de programas de saúde e educação públicas. A Associação, apesar de algumas crises internas e desavenças com as autoridades, liderava todas as questões que de uma forma ou outra diziam respeito aos interesses das classes produtoras, mesmo quando se tratavam de assuntos exclusivamente agrícolas, já que todas as atividades produtivas nessa fase desembocavam no comércio.[44][45][46]

           
                      Colonos expõem seus produtos em feira na 3ª Légua, c. 1918. Foto do AHM.


            

Pavilhões da Festa da Uva de 1932, na Praça Dante Alighieri. Foto do AHM.

O telefone já havia sido introduzido em 1895, o telégrafo chega em 1906, e o jornal La Libertà inicia sua publicação (em italiano) em 1909,[47] retirando a cidade de seu relativo isolamento. Também aparecem nos primeiros anos do século XX associações beneficentes como a Associação das Damas de Caridade (1913) e o primeiro hospital importante, o Nossa Senhora de Pompéia, inaugurado em 1920,[48] e os primeiros bancos abrem suas agências - Banco da Província em 1918, Banco Nacional do Comércio em 1920.[49] A energia elétrica ilumina a cidade a partir de 1913, oferecendo maior conforto e possibilidades de socialização, ao mesmo tempo em que impulsiona as atividades produtivas.[50]
As feiras agro-industriais se multiplicam na zona rural e na sede urbana, se expandem até para a capital do estado, e se consolida a Festa da Uva como atração comercial e turística de âmbito regional. Os profissionais autônomos especializados encontram um mercado maior e são formados sindicatos, acompanhando a crescente urbanização da sede, que começa a edificar com maior sofisticação em alvenaria abandonando as construções de pedra e madeira que eram típicas dos primeiros tempos, e podendo agora erigir monumentos e se preocupar com a macadamização das ruas centrais e o embelezamento dos principais logradouros públicos..[51][52]


             

                 Inauguração da Viação Férrea em 1 de junho de 1910, data da elevação da Villa de Caxias à condição de cidade. Foto do AHM.
  
                 
 Cantina Pieruccini, 1910. Foto do AHM.


Em 1º de junho de 1910 a Villa de Santa Thereza de Caxias foi elevada à condição de cidade pelo Decreto nº 1607, simplificando seu nome para Caxias, no mesmo dia em que chegava ali o primeiro trem..[50] As estatísticas de 1910 revelam que já funcionavam na cidade 235 indústrias e 186 casas comerciais.[53] Outras etnias como os portugueses, polacos, negros, alemães, judeus eram atraídas para lá e contribuíam para o desenvolvimento geral, e a agropecuária já não era a base maior da economia, embora ainda sustentasse tanto comércio como a indústria. Na primeira metade do século XX as atividades de cultivo e transformação da uva voltadas para o comércio se firmariam como o principal interesse econômico local.[25]
Contudo, em 1911 se deflagra uma séria crise no setor vitivinícola causada pela super-safra e pela adulteração do vinho nos centros distribuidores do Rio de Janeiro e São Paulo, com o conseqüente descrédito do produto, obrigando o governo federal a contratar da Itália Stefano Paternó para organizar as primeiras cooperativas de produtores no sul. A iniciativa contou com o apoio imediato do governo estadual, que as isentou de vários impostos, e foi Paternó quem conseguiu reorganizar também a Associação Comercial, que estava na época desativada por problemas diversos, e a conduziu a uma fase de maior entendimento com o poder público. Não obstante seus esforços, as cooperativas em sua maioria fracassaram e a crise se prolongaria com altos e baixos até a década de 1930.
A I Guerra Mundial não teve conseqüências negativas para a economia de Caxias do Sul, sequer foi mencionada nas atas da Associação Comercial até 1919. Ao contrário, o número de categorias empresariais havia se elevado para mais de 40, com um capital de quase 5 mil contos de réis, e a dificuldade nas trocas internacionais imposta pelo conflito obrigou a indústria local a encontrar soluções alternativas para a falta de certos bens importados, destacando-se a atuação da Metalúrgica Abramo Eberle, que foi mais tarde uma das forças para o direcionamento da economia local para o setor metal-mecânico, hoje a principal fonte de rendas do município. Houve ainda a introdução de novo maquinário e técnicas modernas no campo da vitivinicultura.,.[54][55][56]
Da mesma forma, a Grande Depressão de 1929 foi de certa maneira benéfica para o Brasil, estimulando a industrialização interna a fim de suprir um mercado em crescimento que dependia até então mais das importações. Mesmo que tenha sido sentido um impacto sério na região pela escassez de capital circulante, limitando o crédito e impedindo o cumprimento de compromissos, o incentivo do governo federal às atividades primárias resultou, num primeiro momento, em crescimento do comércio e indústria locais, ainda fortemente baseados no beneficiamento de produtos naturais. Contudo, esse crescimento em meio a uma crise geral logo desencadeou uma grave escassez de energia elétrica e de transportes, chegando ao ponto de afugentar empresas e ameaçar o funcionamento de uma das maiores indústrias caxienses da época, a de Abramo Eberle. Novamente a Associação Comercial interveio e aglutinou os esforços da classe empresarial e do poder público, contornando o problema, e demonstrando a grande união da sociedade em torno de objetivos comuns. Apesar do apoio do governo Vargas às atividades primárias, sua nova legislação trabalhista e previdenciária obrigou a uma reestruturação das relações sociais de trabalho. Assim foram reorganizados o calendário de trabalho e o Sindicato dos Comerciantes e Industriais, e foi criada uma Comissão Mista de Conciliação das Classes Empresariais e Trabalhadora, visando uma adequação à nova legislação.[57] Novas determinações da administração municipal na área de saúde pública ao final da década de 1930 também tiveram o efeito de melhorar as condições de trabalho nos estabelecimentos comerciais e industriais da cidade, e as questões do fornecimento de água e luz, e disposição dos esgotos e do lixo, passaram a receber atenção concentrada do poder público.[58]


                

Interior da Metalúrgica Abramo Eberle. Foto do AHM.


Durante a II Grande Guerra outra vez os problemas se convertem em benefícios e se observa um crescimento na atividade das indústrias. Algumas empresas locais foram declaradas pelo governo como "de interesse militar", e confiscadas para produzirem com plena capacidade para o exército. Seus operários eram tratados como soldados e eram impedidos de abandonar o local de trabalho sob pena de serem considerados desertores. Essa pressão acabou por estimular o surgimento de uma economia mais dinâmica, começando a ser abandonado o padrão econômico tradicional.[59]
Em suma, na primeira metade do século XX a cidade cresceu muito e diversificou seu espectro econômico, levada a isso tanto pelo sucesso da vitivinicultura como pela progressiva urbanização e pela falência do sistema colonial da pequena propriedade familiar. A sucessiva fragmentação das propriedades rurais entre os múltiplos herdeiros as tornou incapazes de prover o sustento das famílias, geralmente grandes, ocasionando o êxodo rural e transformando boa parte dos antigos agricultores em operários da indústria e comércio, que se expandiam na sede urbana, tornando-se comum também a figura do camponês que trabalhava parte do tempo como operário urbano para complementar a renda de seu grupo. É interessante assinalar que a atividade do operário era considerada leve para quem estava acostumado com o trabalho exaustivo na terra. No total o trabalhador não raro acumulava 16 horas de trabalho diário.[60]
Apesar das dificuldades dessa transição de modelo econômico, de crises econômicas e de problemas políticos e sociais, o resultado global foi expressivamente positivo, como mostram alguns indicadores. O número de escolas públicas cresceu sem cessar: em 1901 são 20 na zona rural e 4 na zona urbana; em 1914 são criadas duas de ensino técnico; em 1922 já são 79 rurais, 14 estaduais e 20 administradas pelo município, e entre 1946 e 1948 são fundados 23 cursos supletivos e também bibliotecas rurais itinerantes. O orçamento municipal para a educação se moveu de 0,93% em 1902 para 12,81% em 1949, e a população urbana passou de 2.500 em 1900 para 36.742 pessoas em 1950.[61][62] Muito desse progresso econômico inicial se deveu à formação de uma cultura própria, que se fundava nos laços étnicos, nos objetivos comuns e numa rede de confiança mútua entre os participantes, o chamado capital social, que é uma força produtiva por si mesmo, "possibilitando a realização de certos objetivos que seriam inalcançáveis se ele não existisse".[63] A primeira metade do século encerra na cidade com o aparecimento de uma emissora de rádio, a Rádio Caxias, que a partir de 1946 também deu sua contribuição à economia por servir de eficiente veículo de propaganda das empresas, quando até então a divulgação dos produtos dependia de jornais, do boca-a-boca e de alto-falantes.[59]
                                

            A cultura se diversifica 

           

Quermesse na festa de Santa Teresa de 1910.


                

Congresso Eucarístico Diocesano em 1948.


As festas religiosas continuavam a ter papel relevante na congregação social, e em função do enriquecimento da cidade podiam mesmo aumentar agora seu brilho, contando com a colaboração diligente de várias sociedades de caráter devocional, como o Apostolado da Oração e a Juventude Feminina Católica, que organizavam as atividades, recolhiam doações e preparavam os ornamentos. As datas mais celebradas eram as festas principais da igreja, como o Natal, a Páscoa e o dia da padroeira da Catedral, Santa Teresa de Ávila. Essas festas, que incluíam missas, procissões e litanias nas igrejas, eram acompanhadas de quermesses com várias atrações populares: jogo da tômbola, jogo da mora, pau de sebo, tiro ao alvo, apresentações de bandas e outras. De início ao ar livre, mais tarde no inverno passaram a acontecer em galpões ou no térreo do Bispado, e a partir de 1947, organizadas em torno da Catholica Domus, a secretaria episcopal, quando a novidade foi a compra pelo Bispado de um conjunto instrumental jazzístico para as apresentações do grupo As Garotas do Jazz, que fazia grande sucesso.[64]

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